Ciência, método e poder na seara do inenarrável
- radarfeministablog
- 8 de set. de 2021
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Discurso científico descolado dos problemas de seu entorno, alimentou condições para o negacionismo.

O anti-intelectualismo da extrema-direita que tomou a cena nos últimos anos deve-se, em parte, ao ódio pelo saber produzido nas ciências sobre problemas de gênero (ver, por exemplo, Campanhas antigênero, populismo e neoliberalismo na Europa e na América Latina, de 2021). Esse descrédito, em consonância ao programa neoliberal implementado desde o golpe de 2016, veio acompanhado de uma redução drástica no orçamento destinado à ciência.
O novo Relatório de Ciência da Unesco menciona que nosso investimento em Ciência, em 2018, é menor que a média mundial, em relação ao PIB. Enquanto o investimento médio dos países analisados é de 1,79%, a porcentagem do investimento do PIB brasileiro em ciência é de 1,26%.
China e EUA despontam no investimento em ciência, tendo total comprometimento com uma das faces que os impulsionam à posição de potências. Nós seguimos o ritmo dos países da América Latina, retirando recursos estratégicos de uma área que poderia ser utilizada para pensar soluções mais sistêmicas aos nossos problemas.
Ao passo que a ciência segue desvalorizada, alguns cientistas seguem desvalorizando leituras do fascismo em vigor e, parecem, descolados do contexto ao qual pertencem.
Seja pelo recorte institucional que separa ciência e prática, seja por respostas às demandas dos seus agiotas, quando não alheias aos territórios, inescrupulosas, cumprir o protocolo do estritamente "técnico" tem custado demasiado caro aos próprios cientistas, como temos visto no Brasil, mas também aos conjuntos dos nossos viventes, uns mais que outros.
Em contraposição, uma fenda aberta no diálogo entre ciência e movimentos sociais propõem que não se trata mais de fazer ciência sobre movimentos sociais, mas de coproduzir, facilitando a circulação mútua entre saberes e práticas.
Acontecimentos como um anúncio de devir ciborgue e outros rompantes fascistas que nos acometem, contudo, são ainda caracterizados como "alienígenas".
É evidente, não se tratar aqui de defender qualquer ímpeto "suicida". Trata-se apenas de denunciar, de um lugar possível, as relações de poder constituintes do que vem a se caracterizar por "alienígena", como se as pressões às quais fazem padecer nosso corpo não fossem suficientemente concretas.
Talvez o recorte científico em disciplinas com divisões bastante estanques não possibilite às humanidades alcançarem, por exemplo, o progresso da física. Ainda assim, a lógica do argumento que sustenta que um discurso figure como "alienígena" esconde as relações de poder às quais se submete.
A não ser que se configure uma crítica ao método científico, com críticas pontuais à comunicação estabelecida, trata-se de uma situação que aparenta simular uma grande empresa englobando a vida. Um corpo de funcionários dessa empresa silencia diante as agressões que uma funcionária sofre, em virtude do medo vindo de um outro em posição superior na hierarquia, que a empresa simplesmente inventou para se manter em pé.
E, se por ventura, a crítica que caracteriza um pensamento enquanto "alienígena" referir-se ao método científico empenhado na construção da pesquisa, podemos citar "Contra o método" (1975), do filósofo da ciência austríaco, Paul Feyerabend, minando da ciência qualquer vestígio de seu positivismo tóxico.
Neste livro, Feyerabend sustenta a desconstrução da ideia de que a ciência, para existir, deva se basear em regras fixas e universais. Essa ideia não é apenas quimérica, como também perniciosa, diz o autor. Quimérica, pois implica em desconsiderar as circunstâncias históricas que nos estimulam ou provocam nosso desenvolvimento. E é perniciosa pois tende a acentuar nossas qualificações profissionais em detrimento de nossa humanidade.
Não são somente esses os limites que a ciência moderna trazem consigo. O autor completa seu raciocínio, de modo a acentuar os riscos do dogmatismo científico, que levam a ignorar as complexas condições físicas e históricas que exercem influência sobre a evolução científica.
Se a ciência ainda não pode anunciar sua dependência subordinada ao Estado ou às grandes corporações, talvez seja nas fendas abertas pela estética que encontramos uma abertura ética.
Um disco do Belchior, por exemplo, poderia estar muito mais próximo à verdade do que um discurso científico que categoriza o discurso do outro, suscetível ao fascismo, como um discurso de outro planeta.
Cabe reconhecer que a estética, contudo, ainda não tem poder instituinte. Pode-se recorrer à justiça com a pretensão de verdade de um texto poético?
Em 13 de agosto de 2020, foi instalada em Nova York, em um parque próximo ao tribunal onde o produtor de cinema americano Harvey Weinstein foi condenado à prisão por estupro e ato sexual criminoso contra mulheres, uma estátua da Medusa segurando a cabeça do herói Perseu quem, no mito tradicional, a decapita.
Nessa proposta artística, a história de Medusa é revisitada em seus valores patriarcais mais do que explícitos. Na mitologia original, Medusa, depois de sofrer um estupro, é condenada por supostamente profanar o espaço sagrado de Atena.
Na obra contemporânea do artista argentino-italiano, Luciano Garbati, o mito é revisto, e Medusa é quem decapita Perseu.
A proposta foi construída em tributo ao movimento #MeToo, iniciado com as denúncias dos casos de estupro cometidos pelo produtor de cinema Weinstein. Foi o pontapé para que mulheres em todo o mundo relatassem suas experiências de abusos semelhantes.
Neste caso do diretor de cinema condenado, justiça e arte caminharam juntas. Agora, enquanto a ciência ocidental patina na sua dependência subordinada aos ditames do mercado, escondendo os interesses de seus agiotas, trabalha para construção de sua própria ruína.
Vide o caso do nosso país, qual a Ciência tem passado pelo descrédito dos negacionistas, além de ter seus recursos drasticamente reduzidos, resultado de seu descolamento dos problemas concretas dos ambientes que cercam seus institutos.
Contra isso, talvez, a defesa de uma racionalidade científica múltipla e contextual pudesse reverter o problema. Uma ciência que fosse menos cínica, mais próxima dos problemas e agruras a que estamos suscetíveis, sejam eles de ordem estruturais ou não.
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