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Marginalização dos corpos racializados no âmbito escolar

  • radarfeministablog
  • 25 de mai. de 2021
  • 4 min de leitura

Há situações da vida cotidiana que nos deixam perplexos. Para algumas situações pode ser que não encontremos palavras ou organização lógica para narrar o ocorrido dentro de toda sua complexidade.


Por isso, aproximar-se do trabalho intelectual de autores pretxs que abordam experiências violentas como o racismo e o empoderamento dos nossos é tão importante.


O começo dessa incursão nos leva ao encontro de experiências comuns, funciona como uma espécie de alfabetização. Você encontra sentido para aquilo que já vivenciou, quer se apropriar das ideias e, de forma inconsequentemente, pode até atravessar a autoridade do/a autor/a.


Ocorre que a experiência vivenciada em outro momento te deixava perplexa. E, de repente, você encontra uma forma para expressá-la. A experiência da outra, quando é uma mulher preta quem escreve, é também tão sua, quando é uma mulher preta quem lê.


Com o tempo, conforme avançamos nas leituras, percebemos que as experiências vivenciadas não são tão incomuns assim. Na verdade, por mais absurdas e violentas que possam ser, elas se repetem.


Nesse caso, os dados estatísticos são importantes para demonstrarem o quanto o racismo ainda estrutura nossa sociedade, mas a narrativa de fatos vivenciados nos dá linguagem para reconhecê-lo na vida cotidiana.


Com esse preâmbulo quero dar destaque à experiência estudantil que encontrei na trajetória de duas grandes intelectuais, Conceição Evaristo e Grada Kilomba. Embora sejam de gerações diferentes e tenham vivido em localidades distintas, a primeira no Brasil, a segunda em Portugal, ambas enfrentaram o racismo na organização do espaço escolar.


No artigo "Escre(vivência): a trajetória de Conceição Evaristo (Bárbara Araújo Machado, 2014), encontrei a seguinte citação:


"Geograficamente, no curso primário experimentei um ‘apartheid’ escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. passei o curso primário, quase todo, desejando ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios." (Conceição Evaristo por Conceição Evaristo, 2009, p. 1-2).


Nesse trecho fica evidente uma prática de racismo que certamente ultrapassava qualquer regimento escrito que aquela escola tivesse. Os resquícios do escravagismo experimentados no Brasil são sutis se comparados àqueles praticado nos Estados Unidos, o que não significa que sejam menos efetivos para o projeto de vulnerabilização e submetimento dos nossos corpos, o escondem para melhor aplicá-lo.


Em "Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano" (2008), Grada Kilomba antes de entrar nas análises das trajetórias de suas entrevistadas, narra sua saga até institucionalizar-se pós-graduanda na Alemanha. Foram sucessivos pedidos de documentos que não constavam no edital, uma prova de Alemão e até um quase convite de uma das funcionárias do curso para que ela realizasse sua dissertação em casa. Ainda durante sua infância, na escola, ela conta que xs pretxs eram direcionados para sentarem-se nos fundos da sala de aula.


Ainda me lembro de mais um caso de racismo na escola, narrado pela colunista do Uol, Jacira Roque de Oliveira, escritora, artista plástica e mãe de Emicida. Ela conta em uma matéria de estreia de sua coluna no portal, que foi apresentada na diretoria de sua escola por que escrevia muita bem já na primeira série. A professora tinha a intenção de transferi-la para a segunda série, porém a diretora apontou para a sua cor. No dia seguinte, ela - uma criança na escola - era encarregada de lavar o banheiro daquela instituição.


A violência fala por si. A recorrência dessas práticas mostram que as instituições escolares antes de serem um espaço de preparo para a vida adulta em uma sociedade dita democrática, é um espaço de condicionamento dos nossos corpos racializados às estruturas de poder já pré-definidas das sociedades.


Quanto às relações de poder no âmbito da educação, Foucault fala em saber/poder, considerando que os discursos que moldam a sociedade são aqueles de quem detém o saber. O saber/poder levaria tanto a um maior entendimento quanto a um controle maior.


Essa foto abaixo extraída da seção internacional de uma universidade da Espanha ilustra bem essa relação. Estudantes com o sorriso estampado em seus rostos olham para alguém que está aos seus pés e que lhes fotografa, de modo a normalizar a estrutura violentamente hierárquica que mantém parte dos indesejáveis no poço.




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Eu me lembrei da imagem enquanto lia "Memórias da Plantação". Uma das entrevistadas de Grada Kilomba narra um episódio de sua vida que se estabeleceu com seu namorado branco, músico de Jazz. O músico a seduziu em um café no sentido de lhe mostrar uma piada que circulava entre seus amigos, a qual consistia em descobrir o significado de um desenho de um círculo com dois triângulos acima dele. Eram dois membros da Ku Klux Klan olhando para o buraco, qual continha um negro que eles acabavam de jogar dentro.


A autora analisa toda a complexidade envolvida nessa relação, demonstrando como há camadas de inveja em relação ao homem negro, competição e até uma transposição do Complexo de Édipo para o âmbito das relações racializadas. Protege-se a concepção tradicional de "família", enquanto ataca-se aquele produzido "outro".


No caso desta imagem que apresentei, cumpre considerar que há uma pluralidade de estudantes, inclusive uma negra, o que não significa que não se esteja a produzir e a reiterar violência para com nossos corpos.


As sociedades têm refinado suas estruturas de poder, de modo a se blindar de possíveis críticas que evidenciariam, por exemplo, a prática do racismo. Nessa seara, têm-se produzido narrativas que dão muito mais vazão a processos de superação individuais, visando perpetuar o autoritarismo que nos acomete.


No Brasil, há exemplos evidentes disso, como o do vereador Fernando Holiday que, embora negro, não defende políticas de reparação do racismo estrutural ou do presidente da Fundação Palmares desse atual governo, que afirmou que "negro de esquerda é burro, é escravo", e que o Dia da Consciência Negra deveria ser abolido.


A repetição dessas narrativas com elementos de violência no âmbito da trajetória escolar evidencia como nossas sociedades tem reproduzido suas estruturas de poder na prática cotidiana, deslocando para marginalização os corpos racializados, quando pagamos, proporcionalmente, muito mais impostos. Não é possível prosseguir permitindo que esses recursos sejam destinados à nossa marginalização.


Darcy Ribeiro disse, certa vez, “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios” (1982). Cabe ainda saber, nessas escolas, poderemos estudar, com segurança e liberdade, ou estaremos suscetíveis a situações de violência?

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